sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Hermenêutica do Surreal

Por Zé da Cuia


Partindo da modernidade a cienciologia revela um grande número de correntes de pensamento, nalguns aspectos tão contraditórias quanto diversas. Esta diversidade fomenta o debate no último século, sobre paradigmas em pesquisas desenvolvidas, inicialmente, a partir do conceito de paradigma como “resolução de quebra-cabeças” de Kuhn (1962 apud MORGAN, 1980), dentro das ciências em geral. Segundo Morgan, Paradigma é conceituado como uma rede de escolas de pensamento inter-relacionadas, diferenciadas na abordagem e perspectiva, mas que compartilham pressupostos fundamentais sobre a natureza da realidade de que tratam. “São diferentes visões da realidade social”. Já para Lewis e Grimes (2005, p. 45) “são premissas, práticas e concordâncias de uma comunidade acadêmica”.


Nos paradigmas, estabelecidos por Morgan revelam-se diversos métodos que se aproximam, pela visão de mundo (sociologia da mudança radical x sociologia da regulação), ou pela dimensão mais subjetiva ou mais objetiva da realidade. Os paradigmas denominados estruturalista radical e humanista radical são ambos regulados pela sociologia da mudança radical, mas diferem no foco, pois o primeiro é mais objetivo enquanto o segundo é mais subjetivo. Já os paradigmas funcionalista e interpretativista são regulados pela sociologia da regulação, pela manutenção do status quo. No entanto, diferenciam-se no sentido do primeiro ser mais objetivo (assim como o estruturalista radical) e o segundo ser mais subjetivista (assim como o humanista radical).


No paradigma humanista radical, podem-se encontrar métodos científicos como a Psicanálise Clínica (FREUD, JUNG, LACAN), a Psicanálise Histórica e a Psicanálise Aplicada, a Escola de Frankfurt, a Teoria Crítica (MARX E LUKÁCS), a Linguagem da Vida Organizacional (CLEGG), entre outras. Alguns destes métodos centram seu interesse em patologias da consciência pelas quais os indivíduos se aprisionam dentro de fronteiras da realidade que eles mesmos criam e sustentam. Já a Psicanálise Clínica tem como foco o inconsciente, no entanto, para Freud “só o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente. A cada dia, o trabalho psicanalítico nos mostra que esse tipo de tradução é possível”. Esta “tradução”, ou “transposição” pressupõe um novo texto, linguagem.


No paradigma interpretativista, encontram-se métodos como: o Interacionismo Simbólico, a Fenomenologia, a Etnometodologia, a Etnografia, o Pós-modernismo e a Hermenêutica. Neste paradigma, a Ciência é concebida como uma rede de jogos de linguagem, baseados em conceitos e regras subjetivamente determinados. A linguagem é um modo de estar no mundo. Neste sentido, pensar uma pesquisa científica que sobreponha e entrelace dois métodos que, a princípio, sejam regulados por perspectivas de mundo diferentes, apesar da coincidência na ênfase da subjetividade, pode parecer problemático e a pesquisa corre o risco de perder sua validade e fidedignidade. No entanto, uma questão é comum tanto na psicanálise, quanto na hermenêutica: a interpretação, a qual não pode ser pensada de forma dissociada da linguagem: Quais as complementaridades e disparidades entre a interpretação na psicanálise e na hermenêutica? Assim, estabelece-se como objetivo deste artigo: sobrepor e entrelaçar a psicanálise e a hermenêutica com o intuito de revelar suas disparidades e complementaridades no que tange a interpretação.


Para tanto, buscou-se fundamentos teóricos sobre os diferentes paradigmas em Morgan (1980); sobre a interpretação em psicanálise em Freud (1986), Lacan (1998), Puglia (1999), Aguiar (2002), Safra (2003); e sobre o método da hermenêutica em Schleiermacher (2006), Gadamer (1997), Carvalho e Grun (2005), entre outros. Assim como, Ricoeur (1986) e Gouvêa (1993) também foram a base para questões relacionadas à interface da hermenêutica e psicanálise.


Hermenêutica: formas de interpretação


A hermenêutica, ciência ou a arte da interpretação, teve sua formação histórica iniciada com os gregos, que buscavam através dela compreender seus poetas. A hermenêutica é tão antiga quanto a filosofia, e tem sua origem explicada na mitologia grega. Hermes, o deus com asas no chapéu e nas sandálias, é o mensageiro de Júpiter (seu pai) e com destreza e habilidade levava os significados a quem era enviado. O desenvolvimento hermenêutico se dá na tradição judaico-cristã, como forma de interpretar a “verdade” dos textos bíblicos.
Com o Renascimento, têm-se três tipos básicos de técnica de interpretação: “hermenêutica teológica (sacra), filosófico-filológica (profana) e jurídica (juris)”. Schleiermacher, em seus estudos de hermenêutica, segue tanto a tradição exegética da teologia protestante, como a filologia clássica do final do século XVIII, nos quais se encontram o antigo ideal exegético de reconstituição do sentido original de um texto. Schleiermacher foi o primeiro a desenvolver a concepção de círculo hermenêutico. Sua compreensão se dá sempre de uma forma circular, oscilando numa relação recíproca entre o singular e o todo do qual esse singular faz parte. Schleiermacher desenvolveu essa estrutura entre o todo e as partes no âmbito da interpretação de textos.


A partir de uma exigência filosófica, ocorre uma reorientação desse ideal, agora com foco na análise das condições gerais sob as quais a compreensão ocorre e no fornecimento das razões do processo de interpretação. Em meados do século XIX, esse conceito foi associado à justificação metodológica das ciências humanas. Dessa forma, como base das ciências histórico-filológicas, a hermenêutica de Schleiermacher é apontada por Dilthey “como fundamento geral das ciências humanas ou ciências do espírito, contra a pretensão hegemônica da metodologia positivista das ciências naturais experimentais”.


Dilthey alarga o campo da hermenêutica para todo o domínio da compreensão histórica ou das ciências humanas, por meio da compreensão do particular a partir do todo, e deste a partir do particular. “Para Dilthey é necessário entender um texto a partir dele mesmo. Isso designa compreendê-lo objetivamente, uma vez que ele é a manifestação individual de um contexto mais amplo”. Em outras palavras, para ele, os sentidos de um texto estão inseridos nele, não importando a intencionalidade do autor, nem o conhecimento prévio do interpretador. Desta forma, a linguagem é reduzida à unidade mínima que é o significado da palavra na frase.


Gadamer explica que o fracasso de Dilthey se deve, justamente, à característica da objetividade pretendida por ele na concepção metodológica do processo de interpretação. Braida (1995, apud SCHLEIERMACHER, 2006, p. 9) defende, ainda, que esse modelo de apreensão do sentido, como essência do método das ciências humanas, vai questionar o próprio conceito de objetividade científica, visto que na compreensão hermenêutica, tem-se: a inserção do pesquisador (no entendimento da história e da linguagem); o resultado da compreensão (que seria a própria ciência); a mútua dependência constitutiva entre a parte e o todo (e não a compreensão por mera indução); e também a referência a um ponto de vista.


Estabelece-se, assim, um divisor de águas entre as ciências humanas (concepção compreensiva, que visa apreender as significações intencionais das atividades históricas concretas do homem) e as ciências naturais (concepção explicativa, quantitativa e indutiva, que procura determinar as condições casuais de um fenômeno a partir da observação e da quantificação). Entre as concepções compreensivas estão a sociologia de Weber, a psicanálise de Freud, a metodologia empírico-qualitativa na historiografia, entre outras.


Posteriormente, Gadamer, no seu livro Verdade e Método, faz uma virada hermenêutica nova e definitiva: Ele critica a forma de interpretação opaca como princípio, e insere a interpretação do texto no contexto com características do acontecer da tradição na história do ser. A prática da interpretação ganha um caráter existencial, pois a presença do interpretador no processo passa a ter importância, como Gadamer enfatiza, “tem seu sentido afirmar que o intérprete não aborda o 'texto' a partir de sua inserção no preconceito prévio; e sim, que põe expressamente à prova o preconceito no qual está instalado, põe à prova sua origem e validez”.


O leitor, interpretador de um texto quando vai ao texto antecipa possíveis sentidos do conjunto, e, na medida em que confronta suas (pre)visões com o que encontra, faz constantes revisões que acabam por aprofundar o sentido do que está em questão. Esse conhecimento prévio do interpretador, como qual ele elabora um projeto de interpretação, denominado por Gadamer como “antecipação de completude”.


Partindo para uma ação investigativa considerando hipóteses diversas evocando Paul Ricoeur, a interpretação como restauração e confiança no sentido opõe-se, desde Nietzsche e Freud, a ideia de interpretação concebida como desmistificação e redução de ilusões do passado. Nos vemos impactados pela ideia crítica na cultura e filosofia ocidentais, e, obrigados, a repensar o sentido da própria Hermenêutica, uma vez que com Nietzsche, Freud e Marx a atitude de crítica e suspeita contra a Filosofia e cultura tradicionais, baseadas na inocência do Cogito, aparece ligada à temática da interpretação-dissolução das grandes ilusões da consciência humana. Pela primeira vez, o conceito de interpretação surge ligado a uma atitude de suspeita relativamente à linguagem falada pelos homens e falada aos homens. É fundamentalmente desconstrução. Remete para uma problemática nova que já nada tem a ver com o tradicional problema do mal-entendido ou mesmo com o do erro concebido em sentido epistemológico nem tão pouco com a problemática da mentira em sentido moral, mas sim com a temática da ilusão, do desvio e do desmascararamento como modo de ser do existir humano.


O conceito de interpretação alcança assim toda uma nova extensão. O seu novo núcleo é a relação consciência-ilusão. Assim sendo, o objeto da interpretação já não é apenas uma escrita ou texto que se oferece à compreensão mas todo o conjunto de signos capazes de serem considerados como um texto a decifrar pelo seu duplo sentido, sejam eles constituídos por um sonho, um sistema nevrótico, um rito, um mito, uma obra de arte ou pela própria crença. A ideia de texto aparece agora liberta da ideia de escrita. Freud, nomeadamente, fala da narrativa do sonho como de um texto inteligível ao qual a interpretação substitui um outro mais inteligível. Também para Nietzsche a interpretação não tem já que não ver com a intencionalidade da linguagem mas sim com a tarefa de uma destruição de todos os ídolos da consciência falsa.


Depois de Freud, Nietzsche e Marx instala-se no Ocidente a dúvida quanto à consciência. Suspeita-se radicalmente da ideia tradicional segundo a qual o sentido e a consciência do sentido podem coincidir. Procurar o sentido não é já soletrar a consciência do sentido mas, implica, pelo contrário, todo um desfazer das cifras com que a consciência - agora uma instância epidérmica e derivada - tem envolvido a realidade. Para os três, a própria consciência não é o que acredita ser. Subjaz-lhe algo latente - o psiquismo inconsciente, a vontade de poder, o ser social - que deve ser decifrado e revelado por detrás de todas as manhas do sentido consciente.Uma nova relação entre o que é patente e o que está latente estrutura agora a consciência e todo o conjunto das suas manifestações simbólicas. A dimensão manifesta do sentido simula sempre algo de mais profundo que deve ser interpretado justamente a partir das suas traças ou expressões. A genealogia da moral no sentido de Nietzsche , a teoria marxista das ideologias e a teoria freudiana dos ideais e ilusões são “três processos convergentes de desmistificação “que criam” com e contra os preconceitos da época uma ciência mediata do sentido irredutível à consciência imediata deste. A suspeita quanto às ilusões da consciência é agora o motor verdadeiro de toda a interpretação, que não pode já entender-se como uma recolecção do sentido. Pelo contrário, face à ilusão, à função efabuladora da consciência, a hermenêutica desmistificadora exige a rude disciplina da necessidade. Contesta-se radicalmente a expectativa ou confiança no núcleo poético da linguagem própria da hermenêutica que acredita na dimensão intencional dos símbolos. À interpretação cabe apenas arrancar as máscaras e disfarces para chegar a um originário não linguístico nem poiético e já não desimplicar o sentido e o objeto referidos.


A Hermenêutica aparece assim como uma questão que não é pacífica. Muito pelo contrário é percorrida por linhas divergentes e até rivais. Segundo Ricoeur, é este um dos principais méritos da hermenêutica da suspeita: fazer-nos tomar consciência que não existe uma hermenêutica universal; que não existe um canône universal para a interpretação, apenas linhas divergentes e até opostas. E que esta tensão é a própria condição da interpretação, a expressão mais verídica da nossa Modernidade . Oscilamos hoje entre a vontade de escuta e a vontade de suspeita, entre o voto de rigor e o voto de obediência. Talvez o iconoclasmo mais extremo pertença à restauração do sentido. A Hermenêutica da suspeita rasga assim todo um novo horizonte para o próprio problema hermenêutico da confiança: o de uma confiança já não ingénua mas fundamentalmente pós-crítica. Para Ricoeur ela é valiosa pelo seu voto de rigor, pela noção de símbolo que pressupõe e pelo modo como obriga a Hermenêutica a integrar a temática do conflito das interpretações. Deve, portanto, ser reintegrada pela atituda hermenêutica da confiança, pois enquanto atitude de pura suspeita é nihilista, coisa que o não eram nem Freud, nem Nietzsche nem Marx.

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