terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Homúnculos Ordinários

Por Magno Sousa

Homúnculos ordinários, quem és tu?
Para ser tão frio e tão calado...
Tu que não transbordas e nem frutificas...
Tuas raízes só chegam perto, e
Nem tão longe;
Tu que apenas é raso
E apenas isso...
Tu não te acordas...
Onde está você?
E onde estará você?
Se ao menos soubesses...
Homúnculos ordinários...
Não deixe que a pequenez de tua alma te engane...
E a largura de teus erros te resseque...
Batalhas foram travadas para ti...
Desperdiças tempo...
Tu deleitas-te com lixo e veneno...
Os teus olhos não compreendem a luz as minhas palavras...
Os teus ouvidos não ouvem o visual estupendo da realidade
Que te apresento...
As tuas narinas não saboreiam o sabor da vitória
Que é uma transformação...
O teu tato, homúnculos ordinários,
Apenas sente os fenômenos do engano,
Tu aceitas a agonia d desespero, envoltado de
Encanto e surpresas...

O que tens sido você homúnculos ordinários?
Uma lastima
Um apreço?
Vergonha?
Motivo?
Rizo?
Nada ou tudo?
Responda, para que a tua fala cale a minha...
O Grande Assassinato


Por Magno de Sousa
Dentre todos os assassinatos
O pior que acontece...
Sucede quando aqueles
Que assassinam a sua mente...
E afloram as raízes da tirania...
Criam regalias à oligarquia
E além do mais...
Utilizam o seu corpo...

Assassinato mental...
Destruição arbitral...
Deturpação de valores...
Deturpação moral...
Propiciarão e efetivação
Da escravização corporal...

Tiranização dos desejos...
Proliferação das paixões...
Amplitude da angústia
Vida em recequidão...

Olhos a lacrimejar lamúrias...
Corpos esboçando excitação...
Homens a coisificar o mundo
Homens a viver solidão.
Dizendo Sim

Por Magno Sousa

Há muito tempo o meu corpo só diz sim...
Sim para os deleites
Sim para as entregas
Sim para os calores e ardores...
Sim para, brutalidades e atrocidades irreparáveis.
Sim a ódio e rancores
Como a tantas vicissitudes infindáveis

Quem me ensina a viver?
Mil braços erguidos...

Quem me ensina a genuidade
e a ingenuidade?
Mil braços tolhidos!

Minha razão há tanto tempo só diz sim:
Sim à geometria
Sim ao combate à filodoxia...
Sim a homens fortes e esclarecidos
Sim, a também, a seres determinados, positivados e
Esquecidos...
Sim à harmonia e a ordem
Sim ao controle, vigilância e à desordem...
E doravante...
Sim à filosofia.
Explosões

Por Magno de Sousa

Namoro é entrega...
Paixão é dominação...
Paz é harmonia...
Ódio é fixação...

Prepotência é auto-enganação...
Amor é plenitude e
Permanência...
Luxúria é ambição desmedida...
Rizo é musicalização do
Eu interno...

Choro é espatifar-se...
Conversa é sintetização dos espíritos humanos...
E
Silêncio é a quietude da angústia...
Falência


Por Magno de Sousa


As instituições falharam...
Igreja, estado e escola...
O que realmente
Têm acontecido neste mundo?
Nunca mais vi o falso horizonte
Que me resguardava e...
Fazia-me tão feliz.
Por que as agonias das multidões moribundas
Não me machucam mais?
A corrupção que outrora, tanto perseguia e rechaçava.
Hoje já faz parte do meu ser...
Como posso amar aquele que destrói o meu sonho?
É tão fácil viver, e tão difícil pensar...
E tão fácil viver, e tão fácil se vender...
Só existem três tipos de sorriso:
O singelo sorriso proletário por tudo aquilo
Que é pouco e baixo...
O grito eufórico desta geração zumbi...
E as infindáveis gargalhadas burguesas...

O meu ar, ou o nosso ar, o ar.
Dos guerreiros resistentes e íntegros,
Os que ao menos desejam ardentemente o sopro vital da arte,
Criação, verdade e liberdade têm sido as...
Oportunidades de manifestar essa
Brutalidade...

Este é o apelo à mudança...
Mudar ao que se quer...
Transformar e jorrar...
Jorrar neste planeta não apenas flores hippies...
Não apenas psicodelismos fantásticos ou
Riffis fascinantes de guitarra...
Mas também...
Uma felicidade e vida que nos dê orgulho
De pertencer à raça humana.
A Arte de Morrer



Por Magno de Sousa


Eu quero ouvir musicas
Musicas a saborear...
Eu quero saborear vidas
E também a minha própria...
Quero deleitar-me em cânticos, versos, poemas e prosas...
Quanto a orgulhar-me sobre as magnitudes de meu epitáfio
Em relação a morrer
Se houve um ponto apenas que pude conhecer...
Morrer é desconectar...
Morrer é desindividualizare
Também propagar...
Dispersão de si mesmo...
E também, aos outros que a ti esperam...
Quantos aos infindáveis que contigo
Entrelaçar-se-ão...
Estar morto é encontrar-se em perplexidade e em vigilância...
Decorrida há dias...
Achar-se morto é...
Identificar-se às substâncias
Silenciosas e silenciadas da
Dinâmica transformativauniversal.
Morrer é um contínuo estado-acionário
Da desagregação e de desaglutinação
Dos átomos da vida.
Morrer é compreender que meus átomos permanecerão
Eternamente...
A
vagar...
A fabricar...
E a transformar, de forma
Combinatória...
As futuras e extraordinárias formas de expressão de vida...
Que se prontificarão ou não
Ao filosofar...

quinta-feira, 17 de março de 2011

O Amante de Lady Chatterley

Por Zé da Cuia


Após o contato com as obras “Mulheres Apaixonadas”, “O Arco Íris” e “O Amante de Lady Chatterley” do extraordinário autor inglês David Herbert Lawrence Richards, me ocorreu a idéia de fazer esse breve comentário sobre o terceiro título. Publicado em 1928, “O Amante de Lady Chatterley” foi considerado imoral e pornográfico pela crítica inglesa, sendo proibido na Inglaterra por 32 anos. O livro só pôde sair no exterior, enfrentando ainda assim muitas dificuldades. Apesar de ser inglês, o autor não chegou a ver a sua obra publicada no seu país, pois veio a falecer em 1930 com apenas 44 anos, vitimado pela tuberculose que o acompanhara por quase toda a vida. A OBRA - Constance, a Lady Chatterley, casara-se com Clifford. Ela era uma mulher liberal que tivera a primeira experiência sexual antes do casamento; ele era um aristocrata conservador. O relacionamento sexual entre eles fora um fracasso e durara pouco porque, logo depois do casamento, ele partiria para a guerra e voltaria impotente. O casal foi morar na mansão Wragby Hall, nas proximidades das minas de carvão de Clifford. Constance sentiu-se oprimida com o local e com a impotência do marido. Isso a levou envolver-se com um escritor que frequenta a casa do casal. Contudo, o escritor Michaelis sofre de ejaculação precoce. Então ela não consegue se satisfazer com ele e acaba se afastando do escritor. Depois, ela adoeceu e partiu para tratar-se em Londres, retornando posteriormente a Wragby Hall. Agora que o marido tem uma enfermeira para cuidar dele, ela tem toda a liberdade para sair; e num dos passeios pela floresta se encontra com Mellors, o guarda caça de Clifford. Ele até que tenta evitar qualquer tipo de intimidade com a mulher do patrão, mas não consegue. Esses encontros acabam num relacionamento afetivo e sexual.

Enquanto isso, à medida que ela vai se afastando do marido, a enfermeira Sra. Bolton vai se tornando mais íntima do marido de Constance. Lady Chatterley engravida de Mellors e a enfermeira insinua para os visinhos que o filho não é do marido. Para evitar um escândalo, Constance viaja com a irmã e o pai para Veneza, com o objetivo de arrumar um amante para dar um herdeiro ao esposo. Tudo com autorização de Clifford. O amante, porém, não concorda; mas, aos poucos acaba cedendo para evitar a descoberta do relacionamento entre ambos. Por infelicidade, enquanto ela está em Veneza, a esposa de Mellors retorna e é rejeitada. Ele vai para a casa da mãe e Constance é avisada. Mellors discute com o patrão e é despedido. Constance e o amante se encontram em Londres e depois ela volta a casa para comunicar ao marido que quer o divórcio. Clifford não aceita dar o divórcio. Clifford e a Sra. Bolton dividem o mesmo espaço e mantém um relacionamento afetivo similar ao de mãe e filho. Constance e Mellors guardam distância para manter as aparências até estarem em condições de assumir definitivamente seu relacionamento. A obra gira quase inteiramente em torno dos quatro principais personagens. O autor procura descrevê-los de acordo com o papel que vai representar na obra. Constance é descrita de forma a mostrar o que era antes e depois do casamento, e posteriormente o que veio a ser após o encontro com Mellors. Além disso, é importantíssima a origem abastarda, a educação livre e o sexo antes do casamento. Teve uma intimidade maior antes do casamento do que com o esposo.

Apesar de se sentir infeliz sexualmente no casamento, é uma mulher segura de si mesma. É importante notar que ela se modifica sensivelmente ao longo da narrativa. Até se envolver com Mellors, ela não tivera um relacionamento pleno com um homem; e quando o tem, se afasta progressivamente do marido até abandoná-lo para ficar com o amante. Mellors difere de todos os outros personagens. Levou uma vida errante, casou-se, teve uma filha e separou-se partindo para as colônias. Ao retornar, empregou-se como guarda-caça de Clifford. É um homem solitário, avesso ao convívio social e procura levar uma vida tranqüila junto à natureza. Não se importa com o dinheiro e também não pretende envolver-se com nenhuma mulher; por isso deseja ficar só e desliga-se completamente do mundo exterior, refugiando-se na floresta. Não era um homem bonito, mas atraente. Além disso, era sincero, pouco exigente em matéria de amor e, apesar de dominar o inglês, prefere usar um dialeto vulgar. Clifford é um homem rico e poderoso. Dono de Wragby, da mina e da vila, casou-se com Constance e logo depois foi para a guerra retornando mutilado e impotente. Obrigado a viver numa cadeira de rodas. Por isso, não têm ligação sexual alguma com a esposa. Depois de curar-se dos ferimentos, passa a dedicar-se à literatura. Incentivado, porém, pela enfermeira, ele abandona a literatura e entrega-se à administração de sua mina. Apesar de tradicionalista e aristocrático, é capaz de admitir que a esposa tenha um filho de outro homem para continuar sua linhagem. Contudo, o seu status social não o impede de ter um comportamento infantil do início ao fim da obra. A enfermeira Bolton, é uma viúva e tem duas filhas adultas. Ela acredita que todos os homens não passam de bebês. E é com esse comportamento que ela vai influenciar o paciente. Logo de início, ela conquista a confiança e a atenção do patrão. Além disso, ela é uma mulher que gosta de fofocar sobre a intimidade de todos os moradores da vila. Inclusive é ela quem espelha pela vila a notícia de que Constance está grávida e que o filho provavelmente não era do esposo. Ela também é uma mulher de grande bom senso e dona de certo cepticismo. Esses personagens, na verdade, formam dois pares: Constance/Mellors o casal saudável e Sra. Bolton/Clifford o casal doentio. Além desses personagens, há os personagens secundários como: Sir Malcolm, pai de Constance, que é um homem sensual e aberto, e responsável pela educação liberal da filha; Michaelis, o primeiro amante de Constance, é um homem atirado, cínico e dissimulado que não conseguia satisfazer sexualmente a parceira por ter ejaculação precoce; Tommy Dukes, amigo de Clifford, é um homem culto, valoriza mais a contemplação que a especulação filosófica e admite que o sexo é importante nas relações entre homens e mulheres; Leslie Winter, o padrinho de Clifford, é um velho aristocrata conservador que acredita nas teorias racistas em voga no início do século; Hilda, a irmã mais velha de Constance, que não admite relacionamento entre pessoas de classes diferentes e, mesmo assim, ajuda a irmã a se encontrar com Mellors. TEMPO E ESPAÇO - A obra segue um roteiro rigorosamente cronológico, cobrindo um período de aproximadamente um ano. Começa com o casamento de Clifford e Constance em 1917 e vai até a carta que Mellors escreve para a amante, na primavera seguinte. A vida dos personagens está condicionada aos ciclos naturais. Apesar da ausência específica de datas, é possível concluir que a narrativa é linear.

O espaço é aberto. Essa parece ser uma preocupação do autor, pois há uma clara distinção entre espaço social e natural e que chega a ser quase uma oposição. Enquanto o primeiro é sempre pesado, feio, deprimente e opressivo o segundo é belo, saudável e agradável. Apesar de que não há quase sempre descrição detalhada dos ambientes fechados, eles sempre refletem a personalidade de seus habitantes. Além disso, o autor adota sempre uma perspectiva realista em relação ao espaço social e suas mudanças não passam despercebidas ao narrador. O livro é narrado em terceira pessoa, com o narrador demonstrando saber tudo do começo ao fim da obra. Ele, por sua vez, adota uma posição favorável às mulheres. Em alguns momentos, ele partilha as mesmas sensações e os mesmos ideais com as personagens. MENSAGEM - A obra faz uma clara distinção entre os dois tipos de relacionamento, nos dando a impressão que a intenção do autor foi justamente nos levar a optar entre um e outro. Você poderá optar pelo relacionamento Constance/Mellors ou pelo Sra. Bolton/Clifford. No primeiro caso, está o relacionamento saudável, representado pelos Amantes. A união entre os dois rompe com todas as convenções sociais. Constance e Mellors são, a bem da verdade, apenas um homem e uma mulher que desejam levar ao limite todas as possibilidades de sua união. Isso é confirmado pela plena satisfação sexual que obtém nos contatos físicos. E é justamente essa satisfação que mantém estável emocionalmente o relacionamento entre os dois. No segundo caso, está o relacionamento doentio entre o paciente e sua enfermeira. Isso fica evidente pelo tratamento que ela dispensa a Clifford, tratando-o como um bebê e por optar pela intimidade doentia com ele a se casar com outro homem. Diante de tantas evidências apresentadas no romance, é possível afirmar que a ligação entre o primeiro casal é fruto de suas inclinações naturais, enquanto a ligação do segundo casal é resultado de seus desvios emocionais que podem ser entendidos como regressão. Isso nos leva a entender o porquê da preocupação do autor com na caracterização psicológica dos personagens. Essa caracterização não é nada mais nada menos que uma forma de mostrar a afinidade associativa. Afinidade essa que faz com que pessoas semelhantes no comportamento psicológico tendem a se aproximar uma da outra. Acreditando nessa afinidade, o autor quis mostrar que nenhuma convenção social é capaz de impedir que duas pessoas semelhantes se aproximem. Mesmo quando essas duas pessoas são de classes, nível cultural e estilo de vida tão diferente. Sabendo-se que D. H. Lawrence era um homem culto, ele pode ter sido influenciado pelas teorias de Freud ao escrever este romance; uma vez que a ênfase dada ao sexo na construção da personalidade é produto das teorias freudianas. A conclusão que se chega ao final da história é que o livro é uma obra que se aproxima do Realismo. Isso pode ser afirmado pelo tratamento dispensado ao espaço social e a traição. Este último, porém, não tem a importância na obra como teve no Realismo. Outra coisa que a diferencia um pouco do realismo é a conduta dos personagens com relação à raça e meio. Aqui o que importa são as necessidades sexuais do casal Constance/Mellors e não os outros detalhes. Outra coisa importantíssima é se o livro é uma obra pornográfica ou não. Essa é uma controvérsia difícil de resolver; mas, se analisarmos bem a obra e todo o conjunto das obras do autor, é possível chegar a conclusão de que não. O livro “O Amante de Lady Chatterley”, apesar das descrições de atos sexuais, não é uma obra pornográfica. Isso fica evidente na diferenciação que o autor faz ao descrever o sexo antes e depois do início do relacionamento entre Mellors e Constance. Ao verificarmos, fica evidente a diferença entre o ato físico e sentimento que o envolve. O autor quis mostrar que fazer sexo sem amor é uma coisa e fazer amor é outra totalmente diferente. Também é possível afirmar que a proibição à obra é mais resultado dos preconceitos da época do que o conteúdo da obra.

VIRTUDE

Por Zé da Cuia


O Verbete intenciona levar o indivíduo a entendê-lo como uma disposição estável em ordem a praticar o bem; apresenta um efeito além de uma tenra potencialidade ou uma aptidão para uma determinada ação que seja “boa”: é verdadeiramente uma inclinação.

A virtude situa-se no campo metafísico, não tem em si um “prazo de validade”. Incorpora-se aos seus valores, adquiridos ao longo do caminho trilhado no esforço próprio. Virtudes compõem o conjunto de hábitos condutores do homem ao bem individual e como espécie, pessoalmente e coletivamente.

Historicamente o estudo da virtude teve seu início com Sócrates (470-399 a. C.), que tem a virtude como o fim da atividade humana e se identifica com o bem que convém à natureza humana.

Platão (429-347 a. C.) - Desenvolve a doutrina de Sócrates. Apresenta a virtude como meio para atingir a bem-aventurança. Descreve as quatro virtudes cardeais: a sabedoria, a fortaleza, a temperança e a justiça.

Ao conceito já esboçado como hábito, de qualidade ou disposição permanente do ânimo para o bem, Aristóteles (384-322 a. C.) acrescenta a análise de sua formação e de seus elementos. As virtudes não são hábitos do intelecto como queriam Sócrates e Platão, mas da vontade. Para Aristóteles não existem virtudes inatas, mas todas se adquirem pela repetição dos atos, que gera o costume. Os atos, para gerarem as virtudes, não devem desviar-se nem por defeito, nem por excesso, pois a virtude consiste na justa medida, longe dos dois extremos.

O peso dos escritos cristãos fez com que se acrescentasse às virtudes cardeais, as virtudes teologais. Agostinho de Hipona (354-430) diz que "a virtude é uma boa qualidade da mente, por meio da qual vivemos retamente". Tomás de Aquino (1225-1274) diz que "a virtude é um hábito do bem, ao contrário do hábito para o mal ou o vício".

Entre os filósofos não cristãos da modernidade requer especial atenção o sistema kantiano. Kant (1724-1804), em certo sentido, volta às doutrinas estóicas, enquanto procura formular uma ética que seja fim de si mesma, sem leis heterônomas, nem sanções. Contudo a Crítica da Razão Prática, que cria a nova moral, não fala de virtude, apenas de moralidade, que consiste essencialmente no cumprimento do dever, dos imperativos categóricos que a razão autônoma dita. Embora por outros caminhos, caiu no mesmo erro dos antigos estóicos, dando-nos uma ética vazia, que se destrói a si mesma, negando todo legislador, toda sanção, todo o fim ulterior de nossas ações.

Aspecto Prático da Virtude - Além do aspecto teórico da sua conceituação, estritamente conexo com o sistema filosófico agregador da Ética, apresenta um aspecto prático de vivo e permanente interesse: como formar e desenvolver a virtude. É o campo da Psicologia Educacional e da Pedagogia. No educador exige antes de tudo o bom exemplo, tão necessário, especialmente no trato com as crianças, incapazes de longos raciocínios e vivamente levadas à imitação.

Na conceituação aristotélica “a virtude é portanto uma disposição adquirida voluntária, que consiste, em relação a nós, na medida, definida pela razão em conformidade com a conduta de um homem ponderado. Ocupar-se-á da média entre duas extremidades lastimáveis, uma por excesso, a outra por falta. Enquanto, nas paixões e nas ações, o erro consiste ora em manter-se aquém, ora em ir além do que é conveniente, a virtude encontra e adota uma justa medida. Por isso, embora a virtude, segundo sua essência e segundo a razão que fixa sua natureza, consista numa média, em relação ao bem e à perfeição ela se situa no ponto mais elevado”. (Ética a Nicômaco, II, 6).

Alguns termos são fundamentais para fazer-nos entender mais claramente o texto filosófico, é providencial localizar os termos mais importantes, e suas noções: Virtude (arétè) designa toda excelência própria de uma coisa, em todas as ordens de realidade e em todos os domínios. Aristóteles a emprega assim, embora lhe acrescente o valor moral.

Disposição (héxis) define-se como uma maneira de ser adquirida. O latim traduziu héxis por habitus. A virtude só será habitus se se retirar desse termo o caráter de disposição permanente e costumeira, mecânica, automática.

Mediedade (mésotès): este termo remete tanto ao termo médio de um silogismo quanto à média (ou ao meio termo) que caracteriza a virtude.

Aristóteles parte de um conceito geral delimitando-o depois, consumando que a virtude é média e ápice. Inicialmente diz que a virtude é agir de forma deliberada; depois, fala em agir em prol do mais alto bem. Ao falar dela como héxis, enfatiza uma capacidade adquirida, constante e duradoura, o que elimina a pretensa qualidade inata. Assim, ao se comportar moralmente, o homem deve também se comportar racionalmente. Uma razão que já passou pela prova dos fatos; a mediedade, diz ele, é a que o homem prudente determinaria. E determinaria em função dos homens superiores a ele. Por isso é oportuno aconselhá-los a imitarem os melhores.

A mediedade opõe-se a dois vícios simétricos: o excesso e a falta: a natureza moral jamais é natural, e sim o resultado de uma maneira de ser adquirida – para mais ou para menos –, o que representa sempre um excesso. Por exemplo, a coragem é virtude delimitada por essa falta que é a covardia e esse excesso que é a temeridade. A virtude revela-se, portanto como um meio termo.

A virtude não é assim uma média aritmética dos excessos para mais ou para menos, ela é o vértice de eminência, é ela quem diz qual é o vício para cima ou para baixo. É aquele que pode menos fazendo mais, e o que muito pode nada fazendo.

Ao longo do tempo e da história, as virtudes foram classificadas em Cardeais e Teologais. As virtudes cardeais são aquelas essenciais. São em número de quatro: prudência, fortaleza, temperança e justiça. Funcionam como uma dobradiça, pois todas as outras devem girar ao redor destas. Isto decorre da etimologia da palavra cardeal (cardo = gonzo = dobradiça).

Prudência - É aquela virtude que permite ao entendimento reflexionar sobre os meios conducentes a um fim racional.

Fortaleza ou valentia - Consiste na disposição para, em conformidade com a razão, em atenção a bens mais elevados, arrostar perigos, suportar males e não retroceder, nem mesmo ante a morte. A paciência, por exemplo, é uma virtude subordinada à fortaleza, e consiste na capacidade constante de suportar adversidades.

Temperança - Consiste em aperfeiçoar constantemente a potência sensitiva, de modo a conter o prazer sensual dentro dos limites estabelecidos pela sã razão. Destarte, a moderação é a temperança no comer, a sobriedade no beber, a castidade no prazer sexual. São aparentados com a temperança: a negação ou domínio de si mesmo, a vontade de não se deixar desviar do bem, nem sequer pelas mais violentas excitações do desejo.

Justiça - Consiste ela na atribuição, na equidade, no considerar e respeitar o direito e valor que são devidos a alguém, ou a alguma coisa.

No campo da religiosidade a Fé, a Esperança e a Caridade são chamadas virtudes teologais, porque não são elas produtos de um hábito, pois o homem não as adquire através de seu próprio esforço.

A Fé é o assentimento do intelecto que crê, com constância e certeza, em alguma coisa. A prudência, a fortaleza, a justiça e a moderação podem ser adquiridas. Ninguém gesta dentro de si a Fé; ou a tem, ou não.

A Esperança é a expectação de algo de superior e perfeito. A Esperança não é o produto de nossa vontade, mas de uma espontaneidade, cujas raízes nos escapam, porque não é ela genuinamente uma manifestação do homem, mas algo que se manifesta pelo homem, porque não encontramos na estrutura de nossa vida biológica, nem da nossa vida intelectual, uma razão que a explique.

A Caridade é a mãe de todas as virtudes como dizem os antigos, e diziam-no com razão: é a raiz de todas as virtudes, porque ela é a bondade suprema para consigo mesmo, para com os outros, para com o Ser Infinito. A caridade, assim, supera a nossa natureza, porque, graças a ela, o homem avança além de si mesmo, além das suas exigências biológicas.

Não é o produto de uma prática, porque pode o homem praticar a caridade sem tê-la no coração; pode o homem exibir uma crença firme, sem alentá-la em seu âmago; pode o homem tentar revelar aos outros que é animado pela esperança, sem ressoar ela em sua consciência.

Ao longo da nossa estadia no planeta terra, adquirimos uma série de hábitos negativos. Alguns deles são visíveis como as práticas do tabagismo e alcoolismo; outros, nem tanto. É que costumamos disfarçá-los ao máximo, para que não se tornem muito evidentes. Nesse sentido, à gula damos o nome de necessidade proteínica; à lascívia chamamos necessidade fisiológica; a ira é embelezada com a expressão paradoxal: “cólera sagrada”; a cobiça é encoberta com a desculpa da previdência; a preguiça disfarçamos com a necessidade de repouso, quando não com a esperteza que faz os outros produzirem por nós.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A GRANDE BARATA
Por Zé da Cuia


Os escritos de Franz Kafka (1883-1924) desvelam estranheza, solidão e culpabilidade em seus personagens. Essas características se apresentam robustamente em uma de suas obras mais conhecidas “A Metamorfose”. O personagem Gregor Samsa depois de uma noite de sono intranquilo despertou convertido em um monstruoso inseto. Estava deitado de costas sobre uma dura carapaça e, ao alçar a cabeça, viu seu ventre convexo e escuro, sulcado por calosidades curvas, sobre o qual quase não se mantinha o cobertor que estava a ponto de escorregar até o chão. Numerosas patas, penosamente delgadas em comparação com a grossura normal de suas pernas, agitavam-se desordenadamente.

Esta obra de Kafka, apresenta uma forte tendência à crônica da vida social, como um roteiro de cunho social. “A Metamorfose” oferta o gênero literário e a temática social oscilando entre romance e conto, sem que se defina exatamente. (novela) e o tema (social). Contendo não muito mais que vinte mil palavras, “A Metamorfose” é muito mais do que um conto, mas não chega a constituir um romance. A onisciência narrativa sublima-se na presença do verbo de elocução “pensar”, nulidando uma suposta narração em terceira pessoa objetiva ou subjetiva. O discurso é inflexível, adota a forma direta e convencional, na dialógica do personagem, e o narrador esclarece a forma de comunicação, de como e por que falou, tem-se a sequencia: travessão, fala do personagem, travessão e verbo de elocução.

Gregor Samsa, é um representante comercial que presta seus serviços para uma empresa da cidade. Seus familiares irmã e pais são os personagens secundários. Nota-se a presença do gerente da empresa (um armazém), uma arrumadeira e três hospedes que tomam parte em “A Metamorfose”.

Há certa indefinição e puerilidade nos personagens deste evento. Kafka não lhes da dimensão exata nem se preocupa em descrevê-los em todas as suas características, básicas, elementares: físicas, intelectuais, psicológicas, morais e sociais. Afora o protagonista, os demais personagens não estão totalmente acabados. Gregor Samsa pode ser classificado como um personagem dito “pronto e acabado”, bem caracterizado. Quanto aos demais, somente por pura suposição pode-se chegar a uma caracterização mais completa. Sendo assim, os personagens secundários são caracterizados como “planos” (fazendo-nos lembrar a tábua rasa de Locke), com uma ou outra característica que não chega a dar uma visão mais completa.

O lugar em que se passa a história é a casa de Gregor Samsa. Seu quarto é o ambiente mais presente na narrativa, sendo nele que Gregor, depois de sua metamorfose, passa a maior parte do tempo. A época da ocorrência dos fatos não é especificada, não se sabendo em que espaço de tempo encontram-se os personagens. Devemos saber que num sentido lógico não poderia se encontroar num tempo além do autor, falecido em 1924.

“A Metamorfose” é de cunho social, mostrando, a despeito da terrível e desconcertante situação em que Gregor se envolvera, as dificuldades advindas dessa metamorfose. Dificuldades a que estaria acometida sua família, já que ele, até o momento da transformação, era o único que trabalhava, sustentando a família. Disso, depreende-se, num primeiro momento, que o assunto predominante seria “o indivíduo que um dia acordou de manhã e viu-se metamorfoseado em uma enorme barata”, porém, isso perde um pouco de força, e a ênfase é dirigida aos problemas oriundos de tal mudança e não mais à mudança em si mesma. Por um longo trecho da narrativa não se discute o porquê dessa metamorfose, ou se Gregor vai ou não voltar a ser um humano, ou ainda quanto tempo duraria sua vida enquanto inseto.

A mensagem que pode ser extraída dessa narrativa é notada somente se o leitor desviar sua atenção do estado em que se encontra Gregor Samsa. Deixando de lado o fato de que ele foi transformado em um inseto gigante, torna-se mais fácil perceber o que Kafka quis transmitir com sua narrativa. Vejamos, até o dia da metamorfose de Gregor, tão-somente ele trabalhava, arcando com todas as despesas da casa, e, ainda, tendo prometido à sua irmã enviá-la para estudar em um conservatório. Depois da transformação, tudo mudou. O pai, já velho, voltou a trabalhar. A mãe passou a costurar. A irmã também, com seus dezessete anos de idade, teve de arranjar um emprego. Até mesmo a casa dos Samsa não foi poupada, sendo transformada numa espécie de hospedaria, daí o surgimento, na narrativa, de três hóspedes como personagens “sub-secundários”. A mensagem seria, à primeira vista, o fato de que foi necessária a ocorrência de uma verdadeira desgraça na vida dos Samsa para que todos se mexessem.

Quanto ao tempo da narrativa, este é cronológico, os fatos vão sendo descritos e narrados à medida que eles vão ocorrendo. A contagem do tempo é feita em horas, dias, semanas e em meses, porém, sem mencionar uma data precisa.

O enredo é que necessita de uma atenção mais especialmente elaborada, ainda mais em se tratando de Kafka. Enredo, vale lembrar, é o conjunto dos fatos de uma história. São dois os elementos que devem ser levados em conta no enredo da maioria das narrativas (tradicionais). São eles: verossimilhança e estrutura. O que torna um enredo apresentável e verdadeiro para o leitor é a lógica na qual ele se assenta. Mesmo sendo pura invenção do escritor, os fatos descritos devem possuir certa carga de credibilidade. Cada fato deve possuir um motivo para ter acontecido. Nada ocorre de graça, e um fato acaba gerando outro, deve existir o “nexo causal”. Em suma, deve haver verossimilhança no enredo porque do contrário ele conteria falhas que não convenceriam o leitor. No que se referem à estrutura do enredo, as narrativas tradicionais devem conter início, meio e fim. É o que Aristóteles chamou de “energeia” (a atualização da potencialidade que existe no personagem e na situação). O romancista ou novelista deve mostrar os fatos passo a passo. Há narrativas que não possuem começo, embora tenham meio e fim, enquanto que em outras ocorre exatamente o contrário, possuindo começo, meio e ausência de fim.

Kafka iniciou sua obra com a seguinte oração: “Uma manhã, depois de um sono intranquilo, Gregor Samsa despertou convertido em um monstruoso inseto”. Ora, a teoria de Aristóteles, a qual se denomina “plano inclinado”, foi posta de lado. O plano inclinado idealizado por Aristóteles pode ser entendido como uma linha que se move da esquerda para a direita através de três inconfundíveis atos, rumo a um clímax, e culminado com um desenlace ou desfecho, o qual pode estar no último parágrafo, ou até mesmo na última frase. Em “A Metamorfose”, quem pode saber o “como” e o “por que” de semelhante transformação. Kafka não o mostra, pois não é isso que importa em sua novela.

Ocorre que Kafka foi expressionista ao escrever “A Metamorfose”, trabalhando, inicialmente, não com situações realistas exteriores, mas sim, iniciando sua narrativa com uma situação expressionista interior, com um estado psicológico que ele transformou, elevando-o ao máximo. Daí resultou a metamorfose de Gregor Samsa, sem qualquer explicação.

A teoria aristotélica (de início, meio e fim) pode ser desdobrada em partes: exposição (introdução ou apresentação), complicação (desenvolvimento, contendo um ou mais conflitos), clímax e desfecho (desenlace ou conclusão). Inúmeros escritores seguem à risca essa sequência. Franz Kafka não seguiu essa “norma” em “A Metamorfose”, fato comprovado com a leitura do primeiro parágrafo. O leitor, que estiver acostumado com romances tradicionais, irá, sem dúvida, estranhar a forma como Kafka inicia sua narrativa, pois irá receber de supetão, uma informação que vai além da imaginação, sem qualquer explicação anterior, ou, em linguagem mais vulgar, sem “preparo de terreno”.

“A Metamorfose” começa já na fase da complicação, saltando a exposição dos fatos. Aliás, podem-se perceber dois momentos em que a história apresenta conflito (complicação). O primeiro conflito é o que já foi mencionado, o momento em que o personagem acorda e percebe que foi transformado num inseto. O segundo conflito surge quando o inseto, é visto pela primeira vez por seus familiares. Aí surge a expectativa acerca da reação que eles terão frente à nova aparência de Gregor Samsa. O clímax ocorre na parte da narrativa em que a irmã de Gregor, Grete Samsa, aconselha seus pais a livrarem-se do enorme inseto, pois já haviam tentado de tudo para ajudá-lo (suportá-lo seria mais conveniente dizer). A partir desse episódio, o leitor poderá encontrar-se na expectativa de um desfecho surpreendente, esperando algo realmente extraordinário. Algo como uma explicação lógica para a transformação de Gregor, ou mesmo seu retorno ao estado normal. O surpreendente é que isso não ocorre. Gregor Samsa não apenas continua sua sina como um repugnante inseto, como acaba morrendo nessa situação. A morte de Gregor, ainda metamorfoseado em inseto, de fome ou de desgosto, ocorre nas últimas páginas, não havendo explicação alguma acerca de como ele havia chegado à condição de um inseto. Enfim, sua família, sem a existência da criatura, fez o que jamais tinha feito antes. Sem mais problemas, cada qual tendo seu emprego (bons empregos, concluíram), saíram pai, mãe e filha, todos juntos para passear de trem (ou de ônibus, depende de quem traduz). A partir daí, o leitor comum não descobrirá nada mais de relevante, porém, uma mirada mais acurada no último parágrafo mostrará algo que merece reflexão, e talvez aí esteja implícita a mensagem maior que Kafka teve a intenção de mostrar.

“Enquanto falavam, o senhor e a senhora Samsa deram-se conta, quase ao mesmo tempo, de que sua filha, apesar de todas as preocupações que a fizeram perder a cor nos últimos tempos, havia crescido e se convertido numa linda jovem cheia de vida. Sem palavras, entendendo-se com o olhar, disseram-se um ao outro que já era hora de encontrar um bom marido para ela. E quando, ao chegar ao final do trajeto, a filha levantou-se antes deles e ergueu suas formas juvenis, pareceu corroborar com os novos projetos e as sãs intenções dos pais.”

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Hermenêutica do Surreal

Por Zé da Cuia


Partindo da modernidade a cienciologia revela um grande número de correntes de pensamento, nalguns aspectos tão contraditórias quanto diversas. Esta diversidade fomenta o debate no último século, sobre paradigmas em pesquisas desenvolvidas, inicialmente, a partir do conceito de paradigma como “resolução de quebra-cabeças” de Kuhn (1962 apud MORGAN, 1980), dentro das ciências em geral. Segundo Morgan, Paradigma é conceituado como uma rede de escolas de pensamento inter-relacionadas, diferenciadas na abordagem e perspectiva, mas que compartilham pressupostos fundamentais sobre a natureza da realidade de que tratam. “São diferentes visões da realidade social”. Já para Lewis e Grimes (2005, p. 45) “são premissas, práticas e concordâncias de uma comunidade acadêmica”.


Nos paradigmas, estabelecidos por Morgan revelam-se diversos métodos que se aproximam, pela visão de mundo (sociologia da mudança radical x sociologia da regulação), ou pela dimensão mais subjetiva ou mais objetiva da realidade. Os paradigmas denominados estruturalista radical e humanista radical são ambos regulados pela sociologia da mudança radical, mas diferem no foco, pois o primeiro é mais objetivo enquanto o segundo é mais subjetivo. Já os paradigmas funcionalista e interpretativista são regulados pela sociologia da regulação, pela manutenção do status quo. No entanto, diferenciam-se no sentido do primeiro ser mais objetivo (assim como o estruturalista radical) e o segundo ser mais subjetivista (assim como o humanista radical).


No paradigma humanista radical, podem-se encontrar métodos científicos como a Psicanálise Clínica (FREUD, JUNG, LACAN), a Psicanálise Histórica e a Psicanálise Aplicada, a Escola de Frankfurt, a Teoria Crítica (MARX E LUKÁCS), a Linguagem da Vida Organizacional (CLEGG), entre outras. Alguns destes métodos centram seu interesse em patologias da consciência pelas quais os indivíduos se aprisionam dentro de fronteiras da realidade que eles mesmos criam e sustentam. Já a Psicanálise Clínica tem como foco o inconsciente, no entanto, para Freud “só o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente. A cada dia, o trabalho psicanalítico nos mostra que esse tipo de tradução é possível”. Esta “tradução”, ou “transposição” pressupõe um novo texto, linguagem.


No paradigma interpretativista, encontram-se métodos como: o Interacionismo Simbólico, a Fenomenologia, a Etnometodologia, a Etnografia, o Pós-modernismo e a Hermenêutica. Neste paradigma, a Ciência é concebida como uma rede de jogos de linguagem, baseados em conceitos e regras subjetivamente determinados. A linguagem é um modo de estar no mundo. Neste sentido, pensar uma pesquisa científica que sobreponha e entrelace dois métodos que, a princípio, sejam regulados por perspectivas de mundo diferentes, apesar da coincidência na ênfase da subjetividade, pode parecer problemático e a pesquisa corre o risco de perder sua validade e fidedignidade. No entanto, uma questão é comum tanto na psicanálise, quanto na hermenêutica: a interpretação, a qual não pode ser pensada de forma dissociada da linguagem: Quais as complementaridades e disparidades entre a interpretação na psicanálise e na hermenêutica? Assim, estabelece-se como objetivo deste artigo: sobrepor e entrelaçar a psicanálise e a hermenêutica com o intuito de revelar suas disparidades e complementaridades no que tange a interpretação.


Para tanto, buscou-se fundamentos teóricos sobre os diferentes paradigmas em Morgan (1980); sobre a interpretação em psicanálise em Freud (1986), Lacan (1998), Puglia (1999), Aguiar (2002), Safra (2003); e sobre o método da hermenêutica em Schleiermacher (2006), Gadamer (1997), Carvalho e Grun (2005), entre outros. Assim como, Ricoeur (1986) e Gouvêa (1993) também foram a base para questões relacionadas à interface da hermenêutica e psicanálise.


Hermenêutica: formas de interpretação


A hermenêutica, ciência ou a arte da interpretação, teve sua formação histórica iniciada com os gregos, que buscavam através dela compreender seus poetas. A hermenêutica é tão antiga quanto a filosofia, e tem sua origem explicada na mitologia grega. Hermes, o deus com asas no chapéu e nas sandálias, é o mensageiro de Júpiter (seu pai) e com destreza e habilidade levava os significados a quem era enviado. O desenvolvimento hermenêutico se dá na tradição judaico-cristã, como forma de interpretar a “verdade” dos textos bíblicos.
Com o Renascimento, têm-se três tipos básicos de técnica de interpretação: “hermenêutica teológica (sacra), filosófico-filológica (profana) e jurídica (juris)”. Schleiermacher, em seus estudos de hermenêutica, segue tanto a tradição exegética da teologia protestante, como a filologia clássica do final do século XVIII, nos quais se encontram o antigo ideal exegético de reconstituição do sentido original de um texto. Schleiermacher foi o primeiro a desenvolver a concepção de círculo hermenêutico. Sua compreensão se dá sempre de uma forma circular, oscilando numa relação recíproca entre o singular e o todo do qual esse singular faz parte. Schleiermacher desenvolveu essa estrutura entre o todo e as partes no âmbito da interpretação de textos.


A partir de uma exigência filosófica, ocorre uma reorientação desse ideal, agora com foco na análise das condições gerais sob as quais a compreensão ocorre e no fornecimento das razões do processo de interpretação. Em meados do século XIX, esse conceito foi associado à justificação metodológica das ciências humanas. Dessa forma, como base das ciências histórico-filológicas, a hermenêutica de Schleiermacher é apontada por Dilthey “como fundamento geral das ciências humanas ou ciências do espírito, contra a pretensão hegemônica da metodologia positivista das ciências naturais experimentais”.


Dilthey alarga o campo da hermenêutica para todo o domínio da compreensão histórica ou das ciências humanas, por meio da compreensão do particular a partir do todo, e deste a partir do particular. “Para Dilthey é necessário entender um texto a partir dele mesmo. Isso designa compreendê-lo objetivamente, uma vez que ele é a manifestação individual de um contexto mais amplo”. Em outras palavras, para ele, os sentidos de um texto estão inseridos nele, não importando a intencionalidade do autor, nem o conhecimento prévio do interpretador. Desta forma, a linguagem é reduzida à unidade mínima que é o significado da palavra na frase.


Gadamer explica que o fracasso de Dilthey se deve, justamente, à característica da objetividade pretendida por ele na concepção metodológica do processo de interpretação. Braida (1995, apud SCHLEIERMACHER, 2006, p. 9) defende, ainda, que esse modelo de apreensão do sentido, como essência do método das ciências humanas, vai questionar o próprio conceito de objetividade científica, visto que na compreensão hermenêutica, tem-se: a inserção do pesquisador (no entendimento da história e da linguagem); o resultado da compreensão (que seria a própria ciência); a mútua dependência constitutiva entre a parte e o todo (e não a compreensão por mera indução); e também a referência a um ponto de vista.


Estabelece-se, assim, um divisor de águas entre as ciências humanas (concepção compreensiva, que visa apreender as significações intencionais das atividades históricas concretas do homem) e as ciências naturais (concepção explicativa, quantitativa e indutiva, que procura determinar as condições casuais de um fenômeno a partir da observação e da quantificação). Entre as concepções compreensivas estão a sociologia de Weber, a psicanálise de Freud, a metodologia empírico-qualitativa na historiografia, entre outras.


Posteriormente, Gadamer, no seu livro Verdade e Método, faz uma virada hermenêutica nova e definitiva: Ele critica a forma de interpretação opaca como princípio, e insere a interpretação do texto no contexto com características do acontecer da tradição na história do ser. A prática da interpretação ganha um caráter existencial, pois a presença do interpretador no processo passa a ter importância, como Gadamer enfatiza, “tem seu sentido afirmar que o intérprete não aborda o 'texto' a partir de sua inserção no preconceito prévio; e sim, que põe expressamente à prova o preconceito no qual está instalado, põe à prova sua origem e validez”.


O leitor, interpretador de um texto quando vai ao texto antecipa possíveis sentidos do conjunto, e, na medida em que confronta suas (pre)visões com o que encontra, faz constantes revisões que acabam por aprofundar o sentido do que está em questão. Esse conhecimento prévio do interpretador, como qual ele elabora um projeto de interpretação, denominado por Gadamer como “antecipação de completude”.


Partindo para uma ação investigativa considerando hipóteses diversas evocando Paul Ricoeur, a interpretação como restauração e confiança no sentido opõe-se, desde Nietzsche e Freud, a ideia de interpretação concebida como desmistificação e redução de ilusões do passado. Nos vemos impactados pela ideia crítica na cultura e filosofia ocidentais, e, obrigados, a repensar o sentido da própria Hermenêutica, uma vez que com Nietzsche, Freud e Marx a atitude de crítica e suspeita contra a Filosofia e cultura tradicionais, baseadas na inocência do Cogito, aparece ligada à temática da interpretação-dissolução das grandes ilusões da consciência humana. Pela primeira vez, o conceito de interpretação surge ligado a uma atitude de suspeita relativamente à linguagem falada pelos homens e falada aos homens. É fundamentalmente desconstrução. Remete para uma problemática nova que já nada tem a ver com o tradicional problema do mal-entendido ou mesmo com o do erro concebido em sentido epistemológico nem tão pouco com a problemática da mentira em sentido moral, mas sim com a temática da ilusão, do desvio e do desmascararamento como modo de ser do existir humano.


O conceito de interpretação alcança assim toda uma nova extensão. O seu novo núcleo é a relação consciência-ilusão. Assim sendo, o objeto da interpretação já não é apenas uma escrita ou texto que se oferece à compreensão mas todo o conjunto de signos capazes de serem considerados como um texto a decifrar pelo seu duplo sentido, sejam eles constituídos por um sonho, um sistema nevrótico, um rito, um mito, uma obra de arte ou pela própria crença. A ideia de texto aparece agora liberta da ideia de escrita. Freud, nomeadamente, fala da narrativa do sonho como de um texto inteligível ao qual a interpretação substitui um outro mais inteligível. Também para Nietzsche a interpretação não tem já que não ver com a intencionalidade da linguagem mas sim com a tarefa de uma destruição de todos os ídolos da consciência falsa.


Depois de Freud, Nietzsche e Marx instala-se no Ocidente a dúvida quanto à consciência. Suspeita-se radicalmente da ideia tradicional segundo a qual o sentido e a consciência do sentido podem coincidir. Procurar o sentido não é já soletrar a consciência do sentido mas, implica, pelo contrário, todo um desfazer das cifras com que a consciência - agora uma instância epidérmica e derivada - tem envolvido a realidade. Para os três, a própria consciência não é o que acredita ser. Subjaz-lhe algo latente - o psiquismo inconsciente, a vontade de poder, o ser social - que deve ser decifrado e revelado por detrás de todas as manhas do sentido consciente.Uma nova relação entre o que é patente e o que está latente estrutura agora a consciência e todo o conjunto das suas manifestações simbólicas. A dimensão manifesta do sentido simula sempre algo de mais profundo que deve ser interpretado justamente a partir das suas traças ou expressões. A genealogia da moral no sentido de Nietzsche , a teoria marxista das ideologias e a teoria freudiana dos ideais e ilusões são “três processos convergentes de desmistificação “que criam” com e contra os preconceitos da época uma ciência mediata do sentido irredutível à consciência imediata deste. A suspeita quanto às ilusões da consciência é agora o motor verdadeiro de toda a interpretação, que não pode já entender-se como uma recolecção do sentido. Pelo contrário, face à ilusão, à função efabuladora da consciência, a hermenêutica desmistificadora exige a rude disciplina da necessidade. Contesta-se radicalmente a expectativa ou confiança no núcleo poético da linguagem própria da hermenêutica que acredita na dimensão intencional dos símbolos. À interpretação cabe apenas arrancar as máscaras e disfarces para chegar a um originário não linguístico nem poiético e já não desimplicar o sentido e o objeto referidos.


A Hermenêutica aparece assim como uma questão que não é pacífica. Muito pelo contrário é percorrida por linhas divergentes e até rivais. Segundo Ricoeur, é este um dos principais méritos da hermenêutica da suspeita: fazer-nos tomar consciência que não existe uma hermenêutica universal; que não existe um canône universal para a interpretação, apenas linhas divergentes e até opostas. E que esta tensão é a própria condição da interpretação, a expressão mais verídica da nossa Modernidade . Oscilamos hoje entre a vontade de escuta e a vontade de suspeita, entre o voto de rigor e o voto de obediência. Talvez o iconoclasmo mais extremo pertença à restauração do sentido. A Hermenêutica da suspeita rasga assim todo um novo horizonte para o próprio problema hermenêutico da confiança: o de uma confiança já não ingénua mas fundamentalmente pós-crítica. Para Ricoeur ela é valiosa pelo seu voto de rigor, pela noção de símbolo que pressupõe e pelo modo como obriga a Hermenêutica a integrar a temática do conflito das interpretações. Deve, portanto, ser reintegrada pela atituda hermenêutica da confiança, pois enquanto atitude de pura suspeita é nihilista, coisa que o não eram nem Freud, nem Nietzsche nem Marx.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Caiu o Último Faraó
Por Zé da Cuia


As manifestações em franco desenvolvimento na África e no Oriente Médio, dão a medida exata da eficiência da comunicação instantânea. Eis as “Revoluções pela Internet”, como se refere ao evento a revista Istoé.

As escaramuças provocadas pelos manifestantes e o governo do Egito, desde o início do ano, ocasionaram a renúncia do presidente Hosni Mubarak no dia 11 último, após uma considerável baixa de mais de 300 mortos.

O levante teve início na Tunísia, quando um vendedor ambulante ateou fogo ao próprio corpo, em protesto contra a truculência da força policial. As redes sociais, e os telefones móveis - foram os principais instrumentos utilizados para reunir os manifestantes tunisianos e, culminou na renúncia do presidente Zine El-Abidine Ben Ali, que fugiu para o exílio após surrupiar o erário. Num efeito dominó, os “anseios da rua árabe” se alastraram ao Marrocos, Mauritânia, Iêmen, Omã, Egito, Sudão, Líbia, Jordânia, Argélia e Bahrein, com reflexos até na Tailândia, no Irã e na Arábia Saudita. O governo chinês tratou de apagar a palavra “Egito” nas pesquisas do Google. A Organização das Nações Unidas, aponta e existência de 2 bilhões de internautas e 5,3 bilhões de celulares no mundo.

Segundo a revista Época tal movimento popular se trata de “O grito árabe pela democracia”. Dos 22 países que compõem a Liga Árabe, apenas o Líbano tem um governo considerado democrático, além do laboratório americano denominado Iraque, que ainda é uma incógnita. Pode até ser um grito pela democracia, embora seja uma democracia diferente da que conhecemos no Ocidente. O verdadeiro grito dessas massas é contra o desemprego, a miséria endêmica e a corrupção generalizada de governantes que vivem no luxo extremo, com contas secretas no exterior, e com o apoio de um sistema policialesco só visto em ditaduras. A gota d’água no Egito foi a intenção de Mubarak fazer seu sucessor o filho Gamal Mubarak, numa espécie de dinastia existente na Coréia do Norte e em Cuba.

O principal local das manifestações egípcias foi a Praça Tahrir, um nome bem sugestivo, pois significa “Libertação”, onde também ficam o Museu Egípcio e o temido Ministério do Interior. Entre Tahrir e a torre da TV estatal fica a embaixada do Brasil, de onde, provavelmente, tivemos as primeiras imagens vistas no Brasil, restritas a um trecho da avenida Corniche El-Nil e ao local de atracação das barcas, nas margens do Nilo.

Os protestos iniciais, de 25 de janeiro, foram convocados no Facebook, pela página Somos Tudo o Que Khaled Disse, uma referência ao jovem Khaled Said, espancado até a morte por policiais em Alexandria, em junho de 2010. Outro grupo, também nascido no Facebook, em 2008, é o Movimento Jovem 6 de Abril, com origem na cidade fabril de Mahalla.

A reação do regime foi convocar partidários, que utilizaram cavalos e camelos para fustigar os manifestantes, além de atirar pedras e destroços do alto dos prédios. Esse ataque da “camelaria ligeira” foi o último ato que tentou salvar o faraó e irá passar à história como um fato burlesco do tipo “brancaleone”.

O Egito, com cerca de 85 milhões de habitantes, é um país superpopuloso. Quase a totalidade dessa população habita os 4% de suas terras férteis – o Vale do Nilo e o Delta.

O país importa 2/3 dos alimentos. Do Brasil importa, principalmente, carne bovina, frango e açúcar. Com um PIB de 180 milhões de dólares, as principais fontes de divisas fortes são obtidas pela cobrança de taxas dos navios que navegam pelo Canal de Suez, pelo turismo e pela exportação de petróleo e gás, em pequena quantidade.

O governo Hosni Mubarak era uma ditadura de fato sob uma roupagem democrática. O Egito é uma república presidencialista desde 1953. O Parlamento egípcio, unicameral, com 454 deputados, é chamado de Assembléia do Povo, uma denominação de origem socialista. De acordo com a Constituição de 1971, a cada 6 anos um candidato a presidente é apontado por pelo menos 1/3 dos deputados. Esse nome deve ser confirmado por pelo menos 2/3 dos parlamentares. Só um nome é apontado para ser escolhido em plebiscito pelo povo. Como o Partido Nacional Democrático, ao qual Mubarak pertencia, é o mais forte do país, este passou a ser indicado a presidente indefinidamente, desde a morte de Anwar Sadat, ocorrida em 1981. Com uma Lei de Emergência imposta ao Egito desde a morte de Sadat, Mubarak tinha amplos poderes sobre o país e as Forças Armadas, podendo dissolver o Parlamento quando quisesse. Tinha também direito de indicar 10 membros do Parlamento e nomear os dirigentes das governadorias (províncias) do Egito, compostos principalmente por militares de altas patentes. Mubarak era, de fato, um faraó, um Ramsés dos tempos modernos.

O Egito milenar, berço de nossa civilização junto com a Grécia, após as dinastias faraônicas foi dominado por diversos povos: persas, gregos, romanos, bizantinos, árabes, franceses, ingleses e turcos otomanos. Com a Revolução de 1952, promovida pelo Movimento dos Oficiais Livres, o Rei Farouk foi obrigado a abdicar em nome de seu filho, Fuad. Em 1953, foi proclamada a República, presidida pelo general Muhammad Naguib. Em 1954, o coronel Gamal Abdel Nasser obriga Naguib a renunciar e assume o governo. Em 1956, depois da retirada das tropas britânicas do país, Nasser nacionalizou o Canal de Suez, ocasionando uma guerra contra Israel, que invadiu a Faixa de Gaza e o Sinai. Para implementar a paz, foram enviadas as Forças de Emergência das Nações Unidas (UNEF) na região, com participação de boinas azuis brasileiros, que chegaram em Port Said em 1957. Em 1958, o Egito, a Síria e o Iêmen formam a República Árabe Unida, que teve vida efêmera. O Egito viria a sofrer outra derrota humilhante, em 1967, na chamada Guerra dos Seis Dias, quando Israel novamente tomou a Faixa de Gaza e o Sinai, além das Colinas de Golã, na Síria. Nasser, apesar das derrotas militares, foi o maior líder do Egito moderno. Até hoje é considerado um mito naquele país.

Em 1970, assume a presidência Anwar El-Sadat. Ao contrário de Nasser, que havia nacionalizado quase toda a produção egípcia, sob influência soviética, Sadat começa a introduzir no Egito a abertura econômica, e começa a aproximação com o Ocidente, principalmente com os EUA. Em 1972, Sadat expulsa do país cerca de 20 mil “conselheiros” soviéticos. Vale lembrar que a represa de Assuã foi construída por Moscou.

O Egito e a Síria, com apoio dos países árabes, atacaram Israel no dia 6 de outubro de 1973, iniciando a Guerra do Ramadã, como é conhecida entre os egípcios, ou Guerra do Yom Kippur (Dia do Perdão), como é conhecida em Israel e no Ocidente. Essa guerra levantou a moral de todo o povo egípcio, devido às vitórias iniciais que quase varreram Israel do mapa. Hoje, no Egito, 6 de outubro é feriado nacional e nome de importante ponte sobre o Nilo no Cairo. Existe também a Cidade Seis de Outubro, criada em pleno deserto, ao sul do Cairo, onde existem vários complexos industriais para desafogar o Grande Cairo. As guerras contra Israel tornaram o Egito pobre e o êxodo rural aumentou espantosamente, inchando o Cairo, com protestos da população frente à carestia, gerando prisões em massa, em 1977. Desde então, as massas ficaram caladas, voltando às ruas somente no início deste ano.

Em 1979, Sadat assinou um Acordo de Paz com Israel, que redundou na devolução do Sinai, só efetivado em 1982. A Faixa de Gaza foi rejeitada pelo Egito, ficando esse pequeno território, altamente povoado e explosivo, sob administração israelense. Esse acordo, aliado à política econômica de Sadat, além de ter abrigado no país o deposto Xá do Irã, revoltou ainda mais os extremistas egípcios. Na parada militar de 6 de outubro de 1981, Sadat foi morto por um membro da Jihad Islâmica do Egito (do qual fazia parte o atual número 2 da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri), sob os gritos eufóricos: “Eu matei o faraó!” Além do Egito, só a Jordânia mantém um acordo de paz com Israel no mundo árabe.

Assume então a presidência o vice de Sadat, o marechal Hosni Mubarak, herói da Guerra do Ramadã, quando era comandante da Força Aérea. Ele procurou manter a linha político-econômica de Sadat e se tornou importante aliado dos EUA, que ainda remetem, a fundo perdido, cerca de US$ 1,5 bilhão por ano a este que é considerado o maior ativo estratégico da região. Um exemplo desse alinhamento com os americanos observou-se na Guerra do Golfo, em 1991, quando o Egito integrou as forças aliadas contra Saddam Hussein, que tinha invadido o Kuwait.

A rejeição contra Mubarak, nas últimas décadas, era maior por parte dos fundamentalistas islâmicos, como a Irmandade Muçulmana, que promoveram atentados às autoridades egípcias, aos cristãos coptas e, desde 1992, a turistas estrangeiros, como o observado no templo da rainha Hatshepsut, em Deir al Bahri, no Alto Egito, quando, em 1997, mais de 60 turistas foram metralhados pelo Grupo Islâmico. Outro ataque violento, reivindicado pela Al-Qaeda, com 88 mortos, foi contra um hotel de luxo no paradisíaco balneário de Sharm E-Sheikh, em 2006, no sul do Sinai, no Mar Vermelho, para onde Mubarak se refugiou após a renúncia. Durante seu governo, Mubarak sofreu uma dezena de atentados, incluindo um no exterior, em Adis-Abeba, em 1995. Com mão de ferro, Mubarak conseguiu neutralizar os ataques terroristas, enforcando muitos radicais islâmicos. No Egito, essa é a modalidade de pena de morte, normalmente aplicada a homicidas, traficantes de drogas e estupradores. Nessa empreitada repressiva, Mubarak teve a ajuda inestimável do chefe da temível Mukhabarat (camisa escura), o serviço secreto chefiado por Omar Suleiman, nomeado vice-presidente no início dos protestos egípcios.
Mubarak não conseguiu diminuir a pobreza no país, onde, diz-se, 50% da população vive com o equivalente a 2 dólares dia, nem conseguiu criar empregos para a massa humana que cresce 2 milhões a cada ano, deixando milhares de jovens sem perspectiva de melhoria de vida. A inflação e a taxa de desemprego são muito superiores aos índices oficiais, alardeados como 11% e 9%, respectivamente – uma manipulação comum em regimes autoritários. É um caldo extremamente favorável aos extremistas, como a Irmandade Muçulmana, que presta assistência social nos moldes do Hamas em Gaza, do Hezbollah no Líbano e da Al-Qaeda na Bósnia e no Afeganistão. Assim, compreende-se a apreensão do mundo democrático frente à possibilidade do Egito cair nas mãos dos clérigos sunitas, que têm por objetivo transformar o país numa teocracia regida estritamente pela Sharia, a exemplo do Irã e do Sudão.

Mubarak quase consegue realizar a proeza de um Ramsés II, que governou o Egito por ainda mais décadas. Só faltou o novo faraó morrer e ser mumificado. Porém, o povo egípcio se cansou do regime, que desde o início da República impôs 4 presidentes militares. Ocorre que os tempos são outros, não existem mais guerras contra Israel, nem ataques terroristas sendo perpetrados no país, apenas a guerra diária pela comida e por uma dignidade humana elementar.

Engana-se quem pensa que o Egito irá se tornar uma democracia. Isto não existe em nenhum país islâmico, a rigor nem mesmo no Líbano, um país que se tornou dividido e violento depois da guerra civil, onde uma milícia externa, o Hezbollah, com apoio da Síria e do Irã, tem grande representação parlamentar. Para haver democracia em um país, é necessário que haja ampla liberdade de opinião e respeito às diferenças étnicas, sociais e religiosas. O islamismo não prega o diálogo, mas o confronto. Não aceita a liberdade de culto religioso, porém tenta impor seu credo, eliminando os não-crentes. Prova disso são a emigração forçada de cerca de 25.000 judeus egípcios após a guerra de 1956 contra Israel, quando tiveram todos os bens confiscados, e os constantes ataques aos cristãos coptas, que têm suas lojas e suas igrejas incendiadas constantemente.

Provas da intolerância islâmica são os movimentos separatistas existentes na Chechênia, no Kosovo, no Sudão, na Cachemira. Os muçulmanos não se aculturam, porém sempre procuram impor sua cultura à força nos países para onde emigram. Por qualquer motivo, fazem levantes na França, onde já somam mais de 10 milhões de pessoas, com incitação à desordem promovida pelos sheiks nas mesquitas, incendiando prédios e carros, embora tenham ampla rede de amparo social naquele país, principalmente educação e saúde. Cospem no prato em que comem. Eles não irão sossegar até o dia em que consigam transformar a Europa na Eurábia, pois não têm receio de portar placas, em suas passeatas, com os dizeres “um dia, o mundo inteiro será islâmico” nos países que os acolheram, como a Grã-Bretanha, a Alemanha, a Bélgica e a França, principalmente.

Antigamente, o Catolicismo tinha um objetivo universal, de evangelizar todos os povos, muitas vezes à força. No século passado, esse objetivo foi perseguido pelo Movimento Comunista Internacional, que pretendeu socializar todos os meios de produção e escravizar todos os povos em nome do Leviatã estatal. Hoje é o Islamismo que tem esse objetivo estratégico, de criar um califado mundial, subjugando todos os povos aos preceitos de Alá. Um clérigo islamita falar em paz e cooperação com outras religiões é o mesmo que um petista falar em estado democrático de direito. É pura enganação.

John Laffin, no livro The Arab Mind, afirma: "A lei islâmica não reconhece a possibilidade de paz com descrentes e infiéis. A parte do mundo não-muçulmano é conhecida na teologia islâmica como território de guerra. A maior parte dos militantes muçulmanos acredita que a tarefa de Maomé não será bem-sucedida enquanto não-mu-çulmanos tiverem controle de qualquer parte do planeta". “território de guerra” é “território a ser conquistado”.

Mubarak foi um herói nacional, tinha inicialmente um grande respeito da população. Porém, aproveitou-se disso para se perpetuar no poder, como verdadeiro ditador, tornando-se onipresente, com fotos em inúmeros outdoors, com apoio da máquina de triturar carne humana chamada Mukhabarat, livrando as Forças Armadas desse trabalho sujo. Por isso, o exército do Egito tem, ainda, uma força moral bastante elevada, necessária para comandar a transição para um novo governo.

Se Mubarak, ao renunciar, não passou ou não conseguiu passar a presidência a seu substituto constitucional, o fato é que houve simplesmente mais um golpe militar e ponto. O Conselho Supremo das Forças Armadas, presidido pelo antigo ministro da Defesa, Mohamed Hussein Tantawi - o preferido de Washington, aboliu a Constituição, dissolveu o Parlamento, prometeu realizar eleições dentro de seis meses e retirou à força os últimos manifestantes da Praça Tahrir. Não aboliu a Lei de Emergência e vai governar mediante decretos. Com isso, as Forças Armadas se tornaram ainda mais poderosas no Egito, onde o Exército controla 30% do PIB.

O que vem pela frente é uma verdadeira esfinge egípcia a ser decifrada, já que o “democrata” Nobel da Paz que caiu de paraquedas na Praça Tahrir e se apresenta como o salvador da pátria, Mohamed El-Baradei, tem o apoio da Irmandade Muçulmana.