quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

ECO
Por Zé da Cuia

O conceito de inconsciente coletivo é sem dúvida o que de forma profunda une Jung à Mitologia. Os anos de estudo de mitologia o levaram ao conceito e ao seu principal conteúdo. O arquétipo. Jung debruçou-se sobre uma vastidão de materiais mitológicos e gnósticos, chegando a uma desorientação total. Desesperava-se quando tentava compreender o sentido dos psicóticos na clínica. Sentiu-se muitas vezes num asilo de alienados imaginários e começou o "tratamento" de analisar todos os deuses, ninfas, centauros..., do livro de Creuzer, como se fossem seus pacientes.
A maioria das noites como relata o próprio Jung em Memórias, Sonhos e Reflexões esteve mergulhado na história dos símbolos, i.e., na mitologia e na arqueologia onde se encontram fontes valiosas para a fundamentação filogenética da teoria da neurose...

Partindo Jung do estudo de Mitologia Comparada, de Religião Comparada, sendo mitos e religiões vistos como expressões espontâneas da psique humana, da observação de pacientes psicóticos, olhando para seus próprios sonhos (expressão do inconsciente) e sonhos de seus pacientes "normais", conclui que as imagens produzidas espontaneamente pela psique em sonhos, fantasias e mitos, são semelhantes em sua forma e estruturação e a partir daí postula a existência de uma camada psíquica igual a todos os homens, capaz de gerar imagens semelhantes, imagens típicas de seres humanos. Jung trabalhou em hospital psiquiátrico durante nove anos e o paciente psiquiátrico se caracteriza pela substituição do mundo da realidade pelo do inconsciente.

"Nossas opiniões, pensamentos e convicções são produtos de uma camada psíquica na qual se produzem os mitos. Esse estrato criador de mitos funciona como nossos sonhos........As imagens produzidas pela psique podem ser altamente pessoais, mas o drama em nosso palco interior costuma ser uma encenação do drama humano geral. Os artistas e os sábios sempre souberam disso. Nossos problemas particulares - nascimento, morte, relacionamentos, conflitos e a busca de significado - são problemas humanos. Quem estiver passando por um deles tem chance de perceber que essa experiência é uma versão de imagens grandiosas que simbolizam o modo como a humanidade sempre vivenciou esse problema. Jung chamou de arquétipos essas imagens atemporais. São dinamismos que fornecem padrões de comportamento, de emoção e de experiências pessoais que transcendem a história pessoal.......Pode-se considerar os mitos como sonhos coletivos e recorrentes da humanidade."

Essa ligação imensa entre a Psicologia Analítica e a Mitologia permite traçar um paralelo entre a personalidade mítica de Eco e alguns conceitos básicos de Jung; permite-nos olhar para a dinâmica do mito através de um olhar junguiano que naturalmente tende a dar espaço ao mito e ver a necessidade de compreendermos o mito até para que nos conheçamos.

Quanto ao mito, este refaz a história das origens, história sagrada. Se das origens, universal. Quanto mais primitivo, mais de todos. Já vimos alguma ou muitas vezes nossa imagem refletida nalguma superfície lisa algum dia e ficamos perturbados. Surge o questionamento quanto aos contornos refletidos: esses contornos são os nossos? Vemos outro ou vemos a nós mesmos? Por isso Narciso nos interessa, por isso é que ele é histórico.

Poderíamos dizer o mesmo de ECO... Quem não viveu um amor impossível? Um amor tão centrado no outro que justo por isso não pode ser amor? Quem não apenas ecoou palavras? Ficando sem identidade, ficando sem fala! Podemos dizer que Eco nos interessa que é historicamente psicológica.

O meio natural de chegarmos ao mito de ECO é através do mito de Narciso, que foi o seu grande amor. Há alguns autores junguianos que se dispuseram a falar sobre o mito de Narciso e Eco, entre eles: Murray Stein, Patricia Berry, Junito de Souza Brandão, Donaldo Schuler e Nathan Schwartz Salant. Como suporte dentro da Mitologia Grega e ensaios, em se tratando de Narciso e Eco, não poderia deixar de lado: Ovídio em "As Metamorfoses".

A versão mais completa de Narciso é a narração de Ovídio.

O mito de Narciso vem da antiguidade em muitas variações. A principal, e a mais detalhada, aparece nas Metamorfoses de Ovídio. Porém, em qualquer forma que apareça, esta é uma estória cujo principal tema é o amor e a paixão frustrada. Pertence às estórias de Eros, como uma das complicações dentro das complexidades do amor erótico."


* Narciso, Eco (por Ovídio):
Tirésias, cuja grande fama se espalhara pelas cidades da Aônia, dava respostas infalíveis às pessoas que o consultavam. A primeira a experimentar a veracidade de suas palavras foi a cerúlea Liriope, que outrora o Cefiso enlaçara nas curvas de seu curso, e, uma vez presa, a violentara. Belíssima, engravidou-se e deu à luz um filho, já então digno de ser amado pelas ninfas, a quem chamou Narciso. Consultando a seu respeito, se o menino viveria muito, se teria uma velhice prolongada, o adivinho respondeu: "Se não se conhecer". Por muito tempo as palavras do áugure pareceram destituídas de sentido. Mostraram seu acerto a maneira com que se desenrolaram os acontecimentos, o modo como morreu Narciso e a estranheza de sua loucura. O filho de Cefiso tinha, então, dezesseis anos, e podia ser tomado tanto por um menino como por um moço. Muitos jovens e muitas jovens o desejam, mas - tanta tão rude soberba acompanhava suas formas delicadas nenhum jovem, nenhuma jovem o tocara. Quando olhava os trêmulos veados apanhados nas redes, a ninfa de voz sonora, que não responde pelo silêncio a quem lhe fala, e nem fala em primeiro lugar, a ressonante Eco, o viu. Eco tinha, então, um corpo, não era voz apenas; no entanto, já era loquaz e usava da boca, como ainda hoje, para repetir a última de muitas palavras, como faz agora. Juno foi a causadora, pois, quando tinha oportunidade, muitas vezes, de surpreender ninfas deitadas na montanha com seu Júpiter, a esperta Eco a detinha, conversando muito, enquanto as ninfas fugiam. Percebendo tal coisa, disse a filha de Saturno: "Com essa língua, que tanto me fez ser iludida, pouco poderás fazer e terás um uso brevíssimo das palavras.” E executa a ameaça: quando alguém acaba de falar, Eco só pode repetir o que ouviu. Então, quando ela viu Narciso andando sem destino pelos campos, e se apaixonou, seguiu-lhe os passos furtivamente; quanto mais o segue, mais se aquece ao calor da chama, do mesmo modo que o inflamável enxofre, com que se reveste a extremidade das tochas, se queima ao aproximar-se do fogo. Quantas vezes ela quis aproximar-se, com palavras carinhosas, e dirigir-lhe ternas súplicas! Sua natureza a impede de falar em primeiro lugar. Permite-lhe, porém, e ela se dispõe a isso, esperar os sons e devolver-lhe as próprias palavras.

Por acaso, o adolescente, separado do grupo fiel de seus companheiros, perguntara: "Aqui não há alguém?" "Há alguém", respondera Eco. Ele se admira, e olha em torno. "Vem!", grita muito alto; Eco repete o convite. Ele olha para trás, e, não vendo ninguém aproximar-se, pergunta: "Por que foges de mim?" E ouve as mesmas palavras que dissera. Insiste, e, iludido pela voz que responde à sua, convida: "Vem para junto de mim, unamos-nos!" A nada Eco respondera com mais boa vontade: "Unamos-nos!" Ajunta o gesto à palavra e, saindo da floresta, avança para abraçar o desejado. Ele foge, e diz, ao fugir: "Afasta-te de mim, nada de abraços! Prefiro morrer, não me entrego a ti!" Eco repetiu somente: "Me entrego a ti!"

Desdenhada, esconde-se na floresta e protege com flores o rosto corado de vergonha, e, desde então, vive naquelas grutas isoladas. Seu amor, no entanto, é perseverante, e cresce com a amargura da recusa. As preocupações incansáveis consomem seu pobre corpo, a magreza lhe encolhe a pele, a própria essência do corpo se evapora no ar. Sobrevivem, no entanto, a voz e os ossos. A voz persiste; os ossos, dizem, assumiram o aspecto de pedra. Assim, ela se esconde nas florestas, e não é vista nas montanhas. É ouvida por todos; é o som que ainda vive nela.
Assim Narciso decepcionara Eco e outras ninfas nascidas nas águas e nos montes, e, antes delas, outros jovens. Despeitado, um deles ergueu as mãos para o céu, exclamando: "Que ele ame, por sua vez, e não possa possuir o objeto amado!" disse. A deusa de Ramnonte atendeu a essa justa prece.

Havia uma fonte de água muito pura, brilhante e prateada, da qual jamais haviam se aproximado os pastores nem as cabras que pastavam na montanha, nem qualquer outro gado, que jamais fora perturbada por qualquer ave, por qualquer animal selvagem, por qualquer ramo caído de uma árvore. Era rodeada pela grama, que chegava até junto da água, e a floresta impedia que o sol esquentasse o lugar. Ali, o adolescente, cansado pelo esforço da caça e pelo calor, estendeu-se no chão, atraído pelo aspecto do lugar e pela fonte. Mas, logo que procura saciar a sede, uma outra sede surge dentro dele. Enquanto bebe, arrebatado pela imagem de sua beleza que vê, apaixona-se por um reflexo sem substância, toma por corpo o que não passa de uma sombra. Fica extático diante de si mesmo, imóvel, o rosto parado, como se fosse uma estátua de mármore de Paros. Deitado no chão contempla dois astros, seus olhos, os cabelos dignos de Baco e de Apolo, o rosto imberbe, o pescoço ebúrneo, a linda boca e o rubor que cobre a cútis branca como a neve. Admira tudo, pelo que é admirado ele próprio. Deseja a si mesmo, em sua ignorância, e, louvando, é a si mesmo que louva. Inspira a paixão que sente, e, ao mesmo tempo, acende e arde. Quantas vezes beijou em vão a água enganosa! Quantas vezes, para abraçar o pescoço que via, mergulhou os braços na água, sem conseguir abraçar-se! Não sabe o que vê; mas o que vê o inflama, e o mesmo erro que ilude seus olhos lhe excita o desejo. Crédulo, o que consegues com esses vãos esforços? Não existe o que procuras. Afasta-te do que amas, e o verás desaparecer. Essa sombra que vês é o reflexo de tua imagem. Nada é por si mesma. Contigo, ela aparece e permanece; com tua partida desaparecerá, se tiveres a coragem de partires.

Nem os cuidados com a alimentação nem com o repouso, todavia, podem afastá-lo dali; estendido.

Na espessa relva, contempla, insaciável, a imagem mentirosa, e perde-se devido aos próprios olhos.

Erguendo-se um pouco, estende os braços para a floresta que o cerca. "Alguém, ó floresta, sentiu mais cruelmente o amor?", pergunta. “Vós os sabeis e, para muitos, fostes um oportuno refúgio”. Vós, cuja existência atravessou tantos séculos, lembrais, durante todo esse longo tempo, de alguém que tenha sofrido assim? Estou apaixonado, e vejo, mas não posso alcançar o que vejo e me seduz; a tal ponto erro como amante. E, para agravo de minha dor, não nos separa nem o mar imenso, nem a distância, nem montanhas, nem muralhas com portas fechadas, mas uma simples camada de água. Ele próprio aspira a ser possuído, pois cada vez que beijamos a água cristalina, ele procura atingir com a sua a minha boca. Dir-se-ia que podes tocá-la, tão pequeno é o obstáculo que nos impede de amarmos-nos. Seja quem fores, vem! Por que me enganas, jovem sem-par? Aonde vais quando te procuro? Certamente, não tenho uma aparência ou uma idade para te fazer fugir. As ninfas também me amaram. Em teu rosto amigo promete-mes não sei qual esperança, e quando te estendo os braços , estendes, por tua vez, os teus; quando sorrio, sorris; também muitas vezes vi correrem lágrimas dos teus olhos quando eu chorava; a uma inclinação de cabeça, respondias da mesma maneira; e, tanto quanto posso adivinhar pelos movimentos de tua linda boca, dizes-me palavras que não chegam aos meus ouvidos. Somos o mesmo! Não me iludo mais com a minha imagem. É por mim que ardo de paixão e sinto e ateio ao mesmo tempo esse fogo. Que fazer? Ser rogado ou rogar? E o que, de agora em diante, poderei rogar? O que desejo está comigo; a riqueza me faz pobre. Oh! Se eu pudesse separar-me do meu próprio corpo! Desejo desusado em um amante queria estar separado do que amo! E já o sofrimento abate o meu vigor, não me resta muito mais tempo a viver e me extingo na flor da idade. A morte não me assusta, pois com a morte aliviarei o sofrimento. Para aquele que amo desejaria vivesse mais. Agora, exalaremos juntos o último suspiro."

Disse, e, com a razão perturbada, voltou à mesma contemplação. As lágrimas turvaram as águas e, no lago agitado, a imagem se tornou indistinta. E, ao vê-la desfazer-se, ele gritou: "Para onde foges? Fica, não me abandones, cruel, eu que te amo! Que me seja permitido olhar o que não posso tocar e alimentar a minha triste loucura". Enquanto se lamenta, abre as vestes, desde o alto, e esmurra o peito nu com as mãos esculturais. Com as pancadas, o peito se tinge de vermelho, como acontece com as frutas, que, alvas em parte, em parte enrubescem, ou como, nos cachos variegados, a uva, ainda verde, se colore de púrpura. Quando o viu, na água cristalina de novo, não pôde suportar por mais tempo, mas, como costumam se derreter a loura cera ao leve calor do fogo ou o orvalho matinal ao morno sol, assim, esgotado pelo amor, ele definha, e um fogo secreto o consome, pouco a pouco. Agora, sua cútis já não oferece a alvura misturada ao rubor; nem restam o vigor e o ânimo que seduziam os seus olhos; nada resta do corpo que outrora Eco havia amado. Essa, ao ver tal coisa, embora ainda ressentida com o agravo, apiedou-se, e todas as vezes que o infortunado adolescente exclamava "Ai!", ela repetia "Ai!" Quando as mãos lhe esmurram os braços, ela repetiu com sua voz o ruído das pancadas. Foram as últimas palavras de Narciso com os olhos postos naquela água já tão conhecida: "Ah, querido em vão!", e o local devolve todas as palavras. E dizendo "Adeus!", responde Eco "Adeus!" Ele repousa na verde relva a cabeça fatigada, e a noite fechou-lhe os olhos cheios de admiração pelo dono. E mesmo depois de ter sido recebido no inferno, ainda se olhava na água do Estige. As náiades, suas irmãs, choraram em altas vozes e depositaram os seus cabelos no túmulo do irmão; choraram as dríades; Eco repete os seus lamentos, e elas já preparavam a pira, as tochas e o féretro. Em lugar do corpo, acharam uma flor dourada, rodeada de folhas brancas.

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